Não se pode falar de moda em Moçambique sem se mencionar o nome de Vasco Rocha e a marca Mozambique Fashion Week, ou MFW para os mais familiarizados. O MFW é um dos maiores eventos da indústria da moda. Existe há 18 anos e foi criado pelo empresário, no âmbito das actividades da agência DDB Moçambique. Vasco é o seu director executivo e um empreendedor de gema, que há muito aposta na organização dos grandes eventos. Na entrevista que se segue, ele fala à MozbUSiness sobre a MFW e sobre o impacto que a moda produz na economia.
Celita Matsena (texto). DDB (fotos)
Qual é o objectivo do MFW?
O nosso maior objectivo é descobrir novos valores, promover a indústria, criar pontes para a formação e exportação de valor, colocar a moda como um elemento forte de transformação na nossa sociedade, potenciar as indústrias criativas e dinamizar a criação de emprego jovem e novas oportunidades. Paralelamente, mostra um Moçambique brilhante e criativo com uma indústria de elevado valor que merece ser conhecida e admirada no mundo.
Para a materialização do MFW existiram desafios? Se sim, quais?
Os desafios para a materialização do MFW foram vários e diferentes, mais ou menos complicados, dependendo do ambiente em cada um deles, da altura e fase, que o MFW foi passando ao longo do tempo.
O primeiro desafio que tivemos foi a materialização do primeiro evento, que foi colocado como parte de um plano de eventos maior e que se realizou durante o Verão numa das províncias de Moçambique — Inhambane. Nesta altura, não tínhamos quaisquer expectativas em relação aos resultados do mesmo e acabou por ser um ‘balão de ensaio’ para futura análise daquilo que poderia, ou não, ser feito no futuro. Por outro lado, na época ainda não havia estilistas ou designers de moda, mas sim alfaiates e costureiras. Profissionais que também não estavam muito habituados a este tipo de eventos.
O segundo momento foi tornar o MFW uma referência nacional e internacional. De um mercado inexistente, desenvolver um market place foi o maior desafio, embora já numa fase bastante diferente e muito mais madura do que quando estávamos na fase inicial. Hoje, os moçambicanos já valorizam, e muito, aquilo que é desenhado e produzido criativamente em Moçambique. Gostam de vestir Moçambique. A melhoria da capacidade criativa, o aumento da qualidade e acima de tudo o orgulho de usar a bandeira em cores e padrões que vestem esse mesmo orgulho.
Como é que foram ultrapassados estes desafios?
Primeiro, o projecto passou por criar uma estrutura inicial de três elementos, para um evento que iria decorrer em três dias. Esses elementos eram os Young designers, Estabelecidos e Pan Africanos. Por outro lado, iniciamos processos de passagem de conhecimento e formação apoiando o desenvolvimento de workshops anuais, onde trouxemos profissionais de fora para poderem ensinar e aperfeiçoar os estilistas que estavam a iniciar a carreira, pontes de trabalho com a Federação de Moda Italiana, que anualmente permitem aos estilistas moçambicanos aprender e apresentar as suas colecções. O mesmo para os modelos, para a produção do evento, para a fotografia, e por aí fora. Era um dos passos mais importantes para que o evento pudesse ter sucesso e, principalmente, trazer sucesso aos seus intervenientes. Além de todos estes processos, para que o MFW pudesse ir evoluindo e criando oportunidades para os diversos intervenientes, teve de se olhar para outro factor importante: o factor financeiro. Para os parceiros e marcas. O evento tem o nome de Moçambique e mostra muito do poder criativo do país, impulsiona a indústria criativa e fomenta o conteúdo local e a oportunidade real de desenvolvimento.
Antes, era difícil olhar para a moda como um elemento de transformação. Ninguém acreditava, mas hoje é uma referência importante na cultura nacional.
Hoje falamos de sustentabilidade, diversidade, inclusão e muitos mais adjectivos e o MFW desde sempre teve isso em consideração na sua plataforma porque sempre tivemos presente o factor de mudança e desenvolvimento. O evento foi premiado, várias vezes, pelas suas campanhas de sensibilização a nível internacional, desde o cancro da mama até à violência doméstica. O MFW, felizmente, é mais do que um evento de moda. Independentemente da opinião de cada um, é um evento que transformou e revolucionou formas de ser e de estar.
Quais eram as expectativas na época da “implantação” deste tipo de certame?
As expectativas eram baixas. Entretanto, o mercado mostrou-nos que havia espaço, necessidade e uma vontade enorme de ter eventos deste género. Logo de início, e em relação ao número de espectadores, as expectativas foram largamente extravasadas, mas também ressaltou de imediato a necessidade de se criar o mercado da moda ou, pelo menos, um local onde a criatividade e o engenho moçambicano pudessem ter uma montra.
MFW EM CRESCIMENTO
Que acções estão a ser tomadas para ultrapassar a limitação aliada à formação?
Como referi, temos vindo a diminuí-la com a introdução de workshops anuais e do envio de vários designers moçambicanos para outros países para que possam estagiar, nomeadamente para a Itália e a África do Sul, fruto de acordos firmados e de uma relação estabelecida com a Federação de Moda Italiana e do South Africa Fashion Week, no entanto é manifestamente pouco para aquilo que são as necessidades presentes. E quando falo de formação, falo de formação não só para os designers ou estilistas, mas também para os modelos e outros actores desta indústria. Tenho a consciência que é um processo em curso, que há necessidade do Governo olhar para esta indústria como um todo e para a criação da sua cadeia de valor. Mas, também tenho a noção que o mesmo Governo tem muitas prioridades e que, portanto, estaremos certamente no “to do list” e que há coisas que se podem efectivar em paralelo, por isso, estamos a trabalhar nesse sentido.
Fazendo uma análise comparativa dos primeiros anos do MFW e dos dias actuais, o que se pode dizer quanto à adesão das pessoas a este tipo de iniciativa?
A adesão tem sido extremamente boa, mas tem mudado desde o início do evento até aos dias de hoje. No passado, tínhamos cerca de 600 pessoas por noite a ver os desfiles. Hoje, temos cerca de 900 a 1.000 pessoas por dia. Num evento que se desenrola durante cerca de 9 a 10 dias.
O que mudou?
No início tivemos de chamar as pessoas e mostrar caminhos e opções, hoje temos de pegar nos designers e transformá-los para poderem extravasar fronteiras e mostrarem o seu produto. Esta transformação passa por fazer sentir a todos os intervenientes que a moda é um negócio e que tem de ser encarada com foco e responsabilidade, se de facto eles quiserem crescer e fazer valer as suas marcas num mercado competitivo (como é o da indústria da moda). E essa é a maior mudança que foi feita nos últimos anos.
A CADEIA DE VALOR DA MODA GERA DINHEIRO E EMPREGO
Como é que a moda pode intervir na economia?
A indústria da moda vale triliões de dólares no mundo. A indústria da moda pode e deve transformar tudo à nossa volta, do ponto de vista cívico ao da saúde e bem-estar, mas acima de tudo, em termos da geração de divisas para o país.
Facilmente entenderemos o valor da indústria se pensarmos que as peças de roupa que usamos vêm de sementes, que depois de plantadas são processadas e, de seguida, passam por um processo criativo até às prateleiras ou às caixas que chegam com a peça de roupa a nossa casa.
Olhando com cuidado, existem milhares de pessoas e suas famílias que vivem desta cadeia de valor. Se for dinamizada, vai ser um motor e um valor acrescentado em outras áreas necessárias para que o produto criativo moçambicano vingue num mercado extremamente competitivo.
Que designers de moda a DDB/MFW apoiou até hoje?
Desde que começamos, já levamos dezenas de designers para acções de formação em Portugal, na Itália e na África do Sul. Se todos estão este momento no activo? Não. Se valeu apena? Sim. Foi desbravado muito caminho, lidou-se com muitos egos nesta caminhada, cometeram-se erros, ouviram-se críticas, mas chegamos até aqui. Não conseguimos que todos viessem connosco por diversos motivos, mas hoje existe um leque bem considerável de designers, do qual nos orgulhamos.
Quais foram os designers lançados pela MFW que hoje são talentos de envergadura internacional?
O leque de estilistas actual passou pelo MFW, o evento foi a sua génese. Nomes como o Taibo Bacar, Nivaldo Thyerri, Shazia Adams, Chibaia, Cuccla, Mabenna, Omar Adelino, Baco Baco, Faheed Gaspar, são neste momento alguns dos estilistas que estão mais preparados para o mercado internacional devido à qualidade do seu produto.
Apesar de estarem a dar passos no mercado externo, esses passos são iniciais e carecem de mais foco, criatividade, investimento e canais de distribuição e ainda há muito caminho para percorrer. O facto de se ter feito um desfile no exterior não é sinónimo que o estilista esteja preparado para o mercado externo.
´Desde 2005, assistiu a alguma evolução na indústria têxtil ou de vestuário em Moçambique?
Não tem havido grande evolução nesse sentido. Continua a haver falta de matéria-prima para os designers poderem elaborar as suas colecções. Apesar de sermos um país produtor de algodão, não temos a cadeia de valor efectivamente montada, uma vez que não produzimos tecidos. Temos só parte da mesma. Quem diz o tecido, diz vários outros elementos que os estilistas precisam e que maioritariamente têm de importar para realizar o seu trabalho. Há já quem desenhe os padrões das colecções, mas os mesmos têm de ser produzidos no exterior e retornarem para poderem ser trabalhados — o que aumenta os custos de produção e o valor da própria peça. Outros há que desenham as colecções e produzem-nas no exterior. Creio que é altura para se iniciar um processo de criação do produto Made In Mozambique, desde a semente até à peça que vestimos. Isso, sim, irá criar muito valor, muito emprego e geração de renda. Se é viável neste momento ou a médio prazo? É tempo de iniciar a discussão e a preparação de um plano real e efectivo, de perceber o melhor modelo a aplicar. Este plano pode fazer evoluir positivamente quer a indústria têxtil quer a indústria criativa.
É possível viver da moda no País?
É possível viver de qualquer negócio e a moda é um deles. Esta movimenta o mundo, gera capital. É só olharmos para todo o movimento que existe dentro de um desfile, desde a plantação, por exemplo, do algodão pelo agricultor, ao seu processamento, à compra do tecido na fábrica, que depois se vai transformar numa peça de vestuário através dos estilistas, e exibida pelos modelos no cat walk; até à intervenção dos modelos, fotógrafos, especialistas de luz e de som, DJs, espectadores, influenciadores, comerciantes, entre outros. Toda a cadeia de valor à volta desta indústria é geradora de dinheiro e de emprego. E é disso que nós vivemos. Mas se quisermos ir ainda mais micro e ver a quantidade de pessoas que vive todos os dias das vendas de roupa, seja ela importada, de calamidade ou outra, certamente que se vai perceber o quão importante esta indústria é no nosso meio.
PROFILE
Vasco Rocha, fundador da MFW
Vasco Rocha é fundador e director executivo da IMAGINE-DDB Moçambique.
Vasco possui mais de 20 anos de experiência em Marketing, Vendas e Gestão, adquirida através do trabalho próximo com marcas locais e internacionais.
Um dos seus principais projectos, lançado em 2005, foi a Semana de Moda de Moçambique (MFW – Mozambique Fashion Week) — uma plataforma que serve para identificar novos talentos e desenvolver a moda.
O MFW é uma plataforma multicultural que visa também influenciar o mercado e sensibilizar consciências para as causas sociais, mostrando que a cultura é uma ferramenta extremamente poderosa para aumentar a consciencialização, mudar mentalidades e transformar sociedades.